terça-feira, 30 de junho de 2009

Convulsão febri

José Albino da Paz

1. Introdução

Apesar da sua alta freqüência na população pediátrica (2-5%), a convulsão febril (CF) ainda suscita dúvidas principalmente quanto ao esquema terapêutico profilático, sendo observadas ao longo do tempo grandes variações nos esquemas propostos, e ainda hoje não existe consenso frente à terapia a longo prazo.

A CF é definida como crise convulsiva na vigência de febre (>38ºC), que acomete crianças entre a idade de seis meses e 5 anos afastados infecção no sistema nervoso central, distúrbios metabólicos graves, intoxicações e os pacientes com insulto neurológico prévio ou história de convulsão sem febre (1).

Podemos classificar a CF em simples e complexa, classificação esta que permite diferenciar o esquema terapêutico a longo prazo. Define-se CF simples ou benigna como aquela com duração curta (<15>


2. Fisiopatologia

Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na CF ainda são duvidosos, embora se considere a associação de alguns fatores como podendo ser responsáveis por tal afecção. O primeiro fator seria a imaturidade cerebral facilitando a ocorrência das convulsões, visto que a CF ocorre apenas em lactentes e no pré-escolar. Não se conhece, contudo, a natureza deste mecanismo.

Fatores genéticos também estão envolvidos na fisiopatogenia da CF. Observa-se maior ocorrência de CF (7%) em membros do núcleo familiar (pais e irmãos) de pacientes com este quadro, e estudos comparando gêmeos homozigotos com heterozigotos mostram concordância maior de CF no primeiro grupo (31-70% para 14-18%). Estudos epidemiológicos mostram que quando os dois pais e um irmão apresentaram CF, um outro filho apresenta risco de 40-80% de também apresentar CF; quando apenas um dos pais e um irmão apresentaram CF, este risco é de 20-30%, e se apenas irmão apresentou CF, o risco é de 20% (2, 3, 4).

Observa-se também maior incidência de epilepsias idiopáticas em familiares de pacientes com CF, destacando-se a epilepsia centro-temporal benigna (epilepsia rolândica). Estes achados sugerem a presença de predisposição genética para CF, sendo possíveis um padrão de herança autossômico dominante com penetrância incompleta ou de caráter poligênico (5). Epidemiologicamente é observada maior incidência de CF na população do extremo oriente (incidência no Japão é 7-8% e nos países ocidentais é 2-5%), o que também sugere um fator genético para este quadro (5).

Outro elemento fisiopatológico envolvido seria a febre; não se sabe porém qual o seu papel exato na gênese da CF. Poderia a febre desencadear alterações metabólicas ou hidroeletrolíticas, as quais alterariam o funcionamento cerebral. Apesar de haver alta associação com alguns agentes etiológicos como o exantema súbito e a shigelose, não se encontrou nenhuma evidência de que um agente etiológico especial ou toxina pudesse estar envolvido na fisiopatogenia da CF. Algumas características, como o grau de febre elevado ou a elevação da temperatura rápida, algumas vezes sugeridos como elementos desencadeantes da CF, nem sempre estão presentes (5).


3. Diagnóstico e diagnóstico diferencial

Quanto aos exames laboratoriais, a coleta de LCR para diferenciar a CF de uma infecção do SNC estaria sempre indicada, segundo alguns autores, quando a crise fosse complicada ou nas crianças menores de 18 meses, e abaixo dos 12 meses seria obrigatória. Segundo estudo de Offringe e colaboradores em 1992 (6), este exame deve ser realizado apenas quando estiverem presentes alguns sinais e sintomas sugestivos de acometimento do SNC como coma ou sonolência persistente, crises repetitivas, paresias/paralisias ou sinais meníngeos. Outro elemento que poderia sugerir meningite seria o aparecimento da convulsão após 24 horas do início da febre. Antes da coleta do LCR deve ser afastada clinicamente a possibilidade de lesão expansiva intracraniana.

O EEG não mostra na prática valor preditivo para recidivas, podendo estar alterado em 22% dos pacientes. Os autores japoneses, porém, consideram que padrão de descargas paroxísticas no EEG pode ser considerado como maior risco para epilepsia, enquanto que outros, como descargas rolândicas, não devem ser considerados. Os exames de neuroimagem também não são indicados na CF (5).


4. Tratamento

A família deve ser orientada a tomar as primeiras medidas frente à CF, como afrouxar a roupa e deixar a criança em posição supina com a cabeça lateralizada, assim como remover secreções na cavidade oral — se os dentes estiverem cerrados não devem tentar abrir a boca da criança. Devem os pais procurar um serviço médico sempre na primeira crise ou se esta for prolongada ou de caráter subentrante (vários episódios próximos).

No serviço de urgência, os cuidados se equivalem àqueles de uma crise convulsiva, devendo inicialmente se manter as vias aéreas e a circulação, e logo a seguir iniciar terapia anticonvulsivante imediata com o uso de diazepam EV (0,3mg/kg lentamente em 2-3 minutos) com monitorização respiratória e, se necessário, repetir após 5 minutos até 3 doses. Em casos de estado de mal epiléptico é indicada a hidantalização (15-20mg/kg EV em infusão em 20-30 minutos com monitorização para arritmias cardíacas ou hipotensão e não deve ser diluído em soro glicosado) (5).

Sendo a CF simples uma condição benigna, o uso de terapia profilática a longo prazo deveria ser altamente eficaz e livre de efeitos colaterais, o que infelizmente não existe. Assim, em junho de 1999 o comitê da Academia Americana de Pediatria em CF (1) recomenda a não utilização de terapia anticonvulsivante tanto contínua como intermitente para este grupo. Nestes casos orienta-se apenas o controle da febre, devendo ser fornecidas orientações educacionais e suporte emocional aos pais.

Em relação à CF complexa, porém, ainda não existe uma conduta estabelecida, devendo em cada caso ser indicada ou não a terapia profilática. Não se indica, porém, qualquer medicação profilática após uma única CF, mesmo que complexa. Dentre os esquemas propostos, encontramos o uso de anticonvulsivante oral contínuo e o uso de terapia intermitente com benzodiazepínicos. Entre as medicações de uso contínuo, apenas o fenobarbital (4-5mg/kg/dia em dose única ou em 2 doses) e o ácido valpróico (10-30mg/kg/dia em 2 a 3 doses) se mostraram eficazes em reduzir a recorrência da CF. Outra medicação anticonvulsivante também utilizada é a primidona, a qual apresenta semelhança bioquímica com o fenobarbital. O fenobarbital apresenta, porém, como principais efeitos adversos, quadros de distúrbios do comportamento como hiperatividade / déficit de atenção e reações de hipersensibilidade, além de possível associação com futuros distúrbios no aprendizado. O ácido valpróico apresenta como inconvenientes trombocitopenia, pancreatite, distúrbios gastrointestinais, ganho ou perda excessiva de peso e a sua associação rara mas fatal com hepatotoxicidade, podendo levar à síndrome de Reye-like especialmente em crianças com menos de 3 anos, o que coincide com a faixa etária da maioria das crianças com CF. Este esquema terapêutico deve ser mantido por 12 a 24 meses, pois é este o período onde ocorrem 75 a 100% das recorrências. Como ocorre em toda terapia a longo prazo, devemos lembrar também a possibilidade de falhas na aderência, e devem ser checados a cada 6 meses os níveis séricos das medicações (nível terapêutico do fenobarbital entre 15-30mg/ml e do ácido valpróico entre 50-100mg/ml). Além disto, alguns autores questionam a efetividade destas medicações (1,5).

O uso de terapia oral intermitente com diazepam (diazepam oral, 0,4-0,5mg/kg/dose) ou os seus derivados (clobazam 1mg/kg/dia em 3 doses, nitrazepam 0,25-0,5mg/kg/dia em 3 doses ou clonazepam 0,5-1mg/kg/dia em 3 doses) — sendo este administrado conjuntamente com o antitérmico ao se notar a febre (>37,8'C), e deve ser repetido após 8 horas se persistir a febre — pode reduzir a recorrência da CF. Este esquema é indicado quando a freqüência de crises é superior a duas crises em 6 meses ou maior que três crises em 12 meses. Muitas vezes, porém, a CF ocorre antes que tenha sido notada a febre, pois em geral esta ocorre no pico de ascensão da temperatura. Além disto, este grupo de medicamentos apresenta como efeitos colaterais sonolência e ataxia, que podem mimetizar uma infecção no SNC (1,5).

Devemos lembrar da possibilidade do uso de diazepam via retal (0,5 mg/kg/dia) durante a crise convulsiva, sendo esta medida terapêutica indicada nos pacientes que tenham previamente apresentado crise com duração prolongada, principalmente os com dificuldade de acesso aos serviços de urgência. Não dispomos no Brasil da apresentação desta medicação em supositórios, mas a formulação do diazepam em ampolas pode ser aplicada através de uma sonda retal. O diazepam e os antipiréticos não devem ser administrados via retal conjuntamente, pois observa-se interferência na absorção destas drogas, devendo-se ter intervalo de 30 minutos entre cada aplicação. A efetividade desta medida dependerá do treinamento dos pais, cabendo a nós a sua adequada orientação. O diazepam é contra-indicado em pacientes com miastenia e glaucoma, podendo ser substituído por hidrato de cloral via retal (250mg/dose abaixo dos 3 anos e 500mg/dose acima ou igual a 3 anos) (1,5).

Em relação ao esquema de vacinação, nenhuma vacina em uso corrente é contra-indicada; porém, cuidados com a febre e em alguns casos até o uso de anticonvulsivantes profilático devem ser considerados particularmente com a vacina do sarampo (5).


5. Evolução e prognóstico

A CF é uma entidade, a princípio, de caráter extremamente benigno, havendo raros casos de seqüelas mesmo nos casos em que ocorra estado de mal convulsivo, ou seja, em 4% dos casos. A presença de estado de mal não reflete também maior recorrência de CF ou evolução para epilepsia, a não ser que o paciente apresente distúrbios neurológicos prévios. A recorrência da CF ocorre em 25 a 30% dos casos, e em geral o número destas recorrências é limitado a duas ou três crises. Offrenga e colaboradores (4) observaram que 32% dos pacientes apresentaram mais uma crise, 15% mais duas crises e apenas 7% três ou mais. A recorrência da CF ocorre até um ano em 70% e até dois anos em 90% dos casos (2); deste achado decorre que o tempo da terapia profilática se estende por este período. O risco de recorrência da CF após uma primeira crise depende da faixa etária, sendo antes dos 12 meses de vida ao redor de 50%, e após os 12 meses este risco cai para 30%. Os fatores associados à recorrência da CF são relacionados no quadro a seguir.

Fatores associados à recorrência de convulsão febril
Idade menor de 12 meses
Antecedente familiar (pais e irmãos) de CF
Crise em vigência de febre abaixo de 38,5ºC
Crise no início da ascensão da febre

A evolução para epilepsia (2-7%) é apenas um pouco maior que a população geral (2%) e parece estar relacionada com CF complicadas, doenças neurológicas prévias e antecedente familiar de epilepsia. Segundo Annegers (3), 6 a 8% das CF complicadas evoluem para epilepsia, enquanto que apenas 2,4% das CF simples apresentarão tal evolução. Considerando-se o número de critérios para CF complicada presentes, os autores acima observaram que se dois critérios fossem positivos, a incidência de epilepsia posterior subia para 17-22%, e se três critérios estivessem presentes o risco era de 49%.

Fatores associados à evolução para epilepsia
convulsão febril complicada
Afecção neurológica prévia
Antecedente familiar de epilepsia
Padrão eletrencefalográfico (duvidoso)

A associação da convulsão febril com evolução posterior para esclerose temporal mesial (EM) ainda é controversa. A EM é uma entidade clínico-patológica caracterizada pela presença de lesão gliótica no córtex hipocampal (fig.1) e que se manifesta clinicamente por epilepsia parcial complexa. Alguns autores, através de estudos em pacientes com EM, observaram maior incidência de antecedentes de CF e levantaram a hipótese que esta, principalmente se prolongada, levaria à EM. Outra possibilidade seria que alguns pacientes que apresentem CF tenham já alguma lesão hipocampal talvez secundária à hipóxia perinatal, e posteriormente evoluiriam com crises epilépticas temporais. O assunto ainda é controverso e não se evidenciou redução da incidência de epilepsia temporal com o tratamento profilático para a CF (2,3).


Bibliografia

1. American Academy of Pediatrics. Commmittee on quality improvement, Subcommittee on febrile seizures. Practice parameter: Long-term treatment of the child with simple febrile seizures. Pediatrics 1999, 103:1307-1309.

2. Nelson KB, Ellenberg JH. Prognosis in children with febrile seizures. Pediatrics 1978, 61: 720-727.

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