sábado, 14 de fevereiro de 2009

VHS- Conceitos importantes

Ricardo Rocha Bastos
Do que se trata?
A velocidade de hemo-sedimentação (VHS) corresponde à altura da coluna que se sedimenta (composta fundamentalmente por eritrócitos) quando o sangue total venoso, anticoagulado, é deixado em repouso, num tubo graduado. Variações no tamanho dos tubos e no tipo de anticoagulante usado diferenciam os dois principais métodos: Westergren e Wintrobe. Se, após 1 hora em repouso, a altura do sedimento é medida em 10 mm, por exemplo, a VHS é fornecida assim: VHS (primeira hora): 10 mm.
Embora alguns laboratórios forneçam os resultados de VHS também para meia hora e 2 horas, não há qualquer evidência de que tais resultados tenham algum significado. Ainda, alguns laboratórios fornecem um índice de Katz, também desprovido de significado. Toda nossa discussão se refere à VHS na primeira hora, portanto.
Quais os valores de referência?
Uma fonte permanente de dúvidas (principalmente para os pacientes) são os valores de referência fornecidos pelos laboratórios. Na grande maioria das vezes eles são inadequados por não levarem em conta dois fatos básicos:
VHS varia com o sexo (mulheres têm VHS mais acelerada que homens);
VHS acelera fisiologicamente com o passar da idade.
Assim, é sugerido o uso das seguintes fórmulas para cálculo dos valores de referência (valores máximos):
VHS de um homem é normal até: idade/2
VHS de uma mulher é normal até: (idade + 10)/2
Portanto, uma VHS de 40 mm que está acelerada para uma mulher de 20 anos, está normal para uma de 80 anos. Só há interesse em uma VHS acelerada. Não existe qualquer evidência científica sobre o valor diagnóstico de uma VHS baixa.
Quais os fatores que influenciam os resultados da VHS?
Alguns fatores bem definidos afetam a VHS de maneira previsível. Embora não existam fórmulas de correção, o conhecimento desses fatores ajuda a interpretação do médico (tabela 1).


Tabela 1. Fatores que aceleram ou reduzem a VHS
Aceleram
Reduzem
anemia
gravidez: acelera a VHS gradualmente, podendo ser alcançado um nível de até 70 mm/h após 20 semanas de gestação
macrocitose
contaceptivos orais
heparina
poliglobulia
insuficiência cardíaca congestiva
microcitose
poiquilocitose
antiinflamatórios não esteroidais em altas doses
corticóides
armazenamento do sangue por mais de duas horas
Observe que se trata de influências, nunca a VHS sendo usada para diagnosticar algumas dessas condições. Mas, por outro lado, uma VHS de 30 mm, num homem de 60 anos com insuficiência cardíaca, está acelerada.
Por que a VHS se acelera?
A VHS depende das interações elétricas entre as hemácias o que, por sua vez, depende da composição protéica do plasma. Alterações nesta composição (principalmente a concentração de fibrinogênio) vão se refletir na VHS. Portanto, podemos compreender a VHS como um reflexo indireto das alterações da composição protéica do plasma. Como as proteínas plasmáticas alteram-se de uma maneira quase infinita na presença das mais diversas doenças, a VHS sofre também infinitas influências, o que levou à sua queda de popularidade (por ser muito inespecífica, portanto). Entretanto, a VHS tem custo baixíssimo e, se usada num contexto clínico definido, pode ser extremamente informativa. Como o método clínico não vem sendo muito cultivado, os contextos clínicos são cada vez mais nebulosos. É natural então que se tenha desenvolvido uma descrença neste exame.
Uma VHS acelerada, entretanto, significa que algo está errado (assim como uma temperatura axilar elevada ou um pulso arterial acelerado), embora não seja específica de qualquer condição em particular. O que proponho é o uso inteligente da VHS, em contextos em que seu resultado pode ser decisivo para definição do próximo passo. Os exemplos seguintes vão ilustrar como a VHS é um importante auxiliar da arte médica.
A pessoa com dores
Toda pessoa com mais de 50 anos que se consulta com dores pelo corpo, principalmente acometendo as cinturas escapular e pélvica, necessita de VHS. A aceleração da mesma (acima de 40 mm/h) aponta fortemente para polimialgia reumática (PMR), uma condição possivelmente vasculítica que responde muito bem a corticóides em baixas doses. O diagnóstico de PMR obriga a uma abordagem abrangente, uma vez que esta condição pode ser paraneoplásica (embora na maioria das vezes não seja).
A pessoa com cefaléia nova
Toda pessoa com mais de 50 anos e uma nova cefaléia, principalmente sobre a região temporal, mais ainda se associada a claudicação mandibular (dor que se desenvolve à medida que se progride na refeição e que passa quando se interrompe a mastigação), deve ter VHS medida. Sua aceleração (acima de 50 mm/h), neste contexto, aponta fortemente para arterite de células gigantes, a vasculite mais freqüente nesta faixa etária. Mais ainda, uma VHS normal é o exame com maior valor preditivo negativo para esta condição (ou seja, ajuda muito a afastar o diagnóstico). Diagnosticar esta condição é importante, porque os pacientes assim afetados têm risco maior de AVE e episódios de isquemia oftálmica (às vezes com perda da visão). A resposta aos corticóides é muito boa.
A pessoa diagnosticada com aneurisma de aorta
Quando alguém apresenta um aneurisma de aorta, geralmente se pensa em doença aterosclerótica ou doenças estruturais primitivas dos tecidos de sustentação (como o complexo de Marfan). Entretanto, estudos mostraram a incidência aumentada de aneurismas de aorta em pessoas com arterite de células gigantes. Novamente a VHS pode ser decisiva.
A pessoa com anemia normocítica normocrômica
Quando alguém com mais de 50 anos nos procura e fazemos um diagnóstico de anemia normocítica normocrômica, afastada hemólise, geralmente raciocinamos com: insuficiência renal (resolvemos a dúvida com creatinina sérica), aplasia medular (resolvemos a dúvida com as séries granulocítica e megacariocítica do hemograma) e doença crônica (muitas vezes não resolvemos a dúvida). É aí que entra a VHS. Uma pessoa com mais de 50 anos com anemia normocítica normocrômica, em quem as causas óbvias foram afastadas, uma VHS acelerada aponta para a possibilidade de uma gamopatia monoclonal (o mieloma múltiplo é o diagnóstico mais falado dentre as gamopatias monoclonais). Uma eletroforese de proteínas plasmáticas em busca de um pico monoclonal é o próximo passo aqui. Em pessoas com menos de 50 anos, uma anemia normocítica normocrômica com VHS acelerada obriga a uma busca detalhada por uma doença crônica (infecciosa, neoplásica, auto-imune e inflamatória, principalmente).
A pessoa com anemia microcítica hipocrômica
A maioria das pessoas com este padrão de anemia terá uma situação ferropriva. Entretanto, até 20% dos indivíduos com doença crônica que desenvolvem anemia terão anemia microcítica hipocrômica (em vez de normocítica normocrômica). VHS acelerada, na presença de anemia microcítica hipocrômica, nos obriga à consideração de uma doença crônica (isolada ou associada a uma situação ferropriva).
A pessoa com dor de garganta
Pessoas com dor de garganta consultam a todo momento. O diagnóstico é óbvio quase sempre. Refiro-me aqui, entretanto, a uma pessoa com dor de garganta em que o exame da orofaringe nada revela e a palpação da loja tireoidiana (na face anterior do pescoço, abaixo da cartilagem cricóide) desperta dor. Principalmente se houver um bócio (ainda que discreto) e taquicardia, a VHS se impõe. Se acelerada, neste contexto, temos o diagnóstico de tireoidite subaguda de de Quervain. Esta situação responde muito bem a antiinflamatórios (raramente necessita de corticóides) e, eventualmente, requer betabloqueadores (para controlar o hipertireoidismo transitório).
A pessoa que pode ter uma condição inflamatória
Às vezes somos consultados por pessoas com queixas articulares (mas em que não conseguimos definir com clareza a existência de artrite), ou queixas sobre o ritmo intestinal (mas em que não temos certeza sobre a conclusão de síndrome do intestino irritável), ou ainda a mulher com dores pelo corpo e talvez febre (em que estamos em dúvida entre uma doença auto-imune inicial ou a síndrome da fadiga crônica). Em todas essas situações, uma VHS acelerada obriga à continuidade das investigações (para artrite reumatóide, doença intestinal inflamatória crônica e lúpus, respectivamente). Nessas situações, em particular, a VHS pode auxiliar (se acelerada, não hesite em continuar suas investigações), mas sempre lembrando que tem baixa sensibilidade (uma pessoa com artrite reumatóide, doença intestinal inflamatória crônica, e lúpus pode ter VHS normal). A PCR quantitativa tem melhor sensibilidade aqui.
A pessoa com sopro cardíaco
A presença de VHS acelerada obriga a descartar uma endocardite infecciosa ou um mixoma.

Leitura recomendada
JAMA 2002;287:92-101. Revisão genial sobre arterite de células gigantes e o papel da VHS em seu diagnóstico.
JAMA 2001;287:98. Releitura da regra de Miller, Gree e Robison para calcular os valores de referência para VHS.

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